quinta-feira, 20 de março de 2008

Patrimônio de Esquinas

Assim começa a manhã de uma segunda, era o que dizia aquele senhor sorridente.
Ah, o velho da esquina! Todas as manhãs ele estava lá a elogiar o sol, a brindar a chuva e brincar com os desenhos das nuvens. Como podia um senhor secular, um monumento histórico, um espectador do mundo; ver ainda beleza em algo? Pensou um pouco. Se fôsse ele a ver as Grandes Guerras e tanta gente que morreu naquela época, não seria ele a acordar cedo para agradecer a manhã cinzenta, ou a nuvem poluída; que dirá o Sol forte por obra do Aquecimento Global.
Pensava nisso quando passou pelo Velho. Farejou aquele familiar cheiro de naftalina cuja procedência era, sem dúvida, as velhas calças com suspensório do simpático arcevo cultural ali prostado na Esquina. Este lhe sorriu e comentou algo passando despercebido aos ouvidos desinteressados assim como o nome que protagonizava o conto. Um cumprimento com a cabeça foi tudo que encontrou como resposta, recebendo um cafuné e um tapinha amigável nas costas. Saiu, continou seu caminho.
Viu ruas, vielas, avenidas . Passou por casas, prédios e grandes condomínios. Caminhou entre crianças, adultos apressados e cachorros serelepes. Encontrou conhecidos, colegas e , até mesmo, grandes amigos. Mas nenhuma rua cheia de crianças a brincar de bola, ou cães abobados a caçar carteiros pela avenida, ou casa antiga espremida entre prédios novos e modernos ; nada era tão sábio, tão belo e tão simples quanto o Velho da Esquina. Voltou.
De cabeça baixa, mirava o chão de pedras da época de Colônia. Soube no mesmo instante que o Senhor da Esquina deveria ter algo a contar sobre aquele chão, aquelas pedras e toda a história dos que ali pisaram. Por isso, apertou o passo virando a larga avenida de carros apressados. Avistou o Senhor ao longe, na virada da quadra, na volta do quarteirão, na Esquina.
Esperou o sinal fechar e atravessou correndo, já que notara o Senhorzinho se afastando. Pela posição do Sol nos prédios novos de elevadores envidraçados e nas casas onde a cor predominante nas paredes era a do Tempo, já passava do meio dia. Ele sabia que perto da tarde o Senhor saía de sua Esquina a comprimentar os transeuntes e visitava sua família cuja fama era de gente humilde e batalhadora, assim como devia ter sido o Antiquário Tagarela quando ainda em condições de trabalhar. Apertou o passo com urgência, contudo, não alcançou o velho corcunda de ossos fracos.
Naquele dia, após o almoço com os netos, o Senhor não voltou para casa. O simpático Sorriso da Esquina voltou para onde a morada que nao via havia muitas décadas, talvez séculos. Voltou levando segredos de ruas, vilas, avenidas e caminhos. Deixando para os que lhe ouviam, preciosos tesouros e a saudade.
Se foi naquele dia o orgulho dos anônimos, dos que jamais foram esquecidos por terem seus nomes citados numa esquina. Lembrados por um desconhecido , tendo seus nomes majestralmente citados em contos soltos nas Esquinas da vida.
Voltou pela rua nosso protagonista com passo pesado, coração despedaçado e olhar perdido. O Mundo perdera um sorriso sincero , um contador de histórias e um homem bom. Tudo numa mesma tarde. Olhou para o céu e viu o sol forte, sem nuvens. Sentiu uma brisa fresca obrigando-o a fechar os olhos. Pensou por um momento quantas histórias o vento não traria naquela manhã. Sorriu como se ainda o Velho estivesse ali a sussurrar em seu ouvido porque o sol era belo e as formas das nuvens de outrora fizeram sentido finalmente.
Sentou-se na Esquina e pôs-se a contar ao vento a melhor das histórias, para que este a levasse à outras Esquinas. Falou de um soldado, uma missão e uma virada de rua. Sentado na Esquina, contou a história de um Herói.